24 de fevereiro de 2010

Que marca no relógio

Queria dedica-lo a algum leitor que me dedica entusiasmado, porque a manhã deste dia sem café me deixa mas vago que um quarto oblongo sem janelas. E os culpados não seriam as janelas que não existem ou o café não consumido. Culpe-se se quiser, mas não conheço o meliante que acinzenta o meio-dia. Se é um meliante ou o vento, um inseto ou uma música, não sei, mas sei que é escuro como um quarto oblongo sem janelas. Pensando bem, não há necessidade de janelas se tudo já é cinza, se tudo já é triste como as frases de um epitáfio. Na verdade essa manhã me lembra mais um epitáfio, lascado a mão com flores murchas e baldias, marcado o "Aqui jaz" de sempre, que sempre jaz na eternidade da morte.

Queria dançar ao túmulo dessa manhã quando o Sol desabar as três da tarde, quando as pombas almoçarem os almoços esmiuçados no chão e o cinza se tornar alaranjado como um poente esfacelado no céu.

Dedico isso a alguém que não tem os olhos da amada pelas manhãs mesmo de longe, alguém como minhas manhãs, álgido mesmo em meio ao calor e cinza em meio a atmosfera ensolarada. Dedico aos que não amam como eu, ou aos que amam mais que eu. Dedico aos que se culpam pelo cinza, que estão certos pois se culpam. Dedico a geografia e a língua portuguesa, pois me deram tempo e espaço para escrever.

Dedico ao frouxo brilhar dos meus olhos
Me dedico, pois se pelo contrário, tudo acaba em trevas.

23 de fevereiro de 2010

humanidade

Horas perdidas em abismos
Em abismos flutuantes de areia
Cujo surgem lírios e sereias,
Cujo sonho sem dormir.

E quando sonho vejo.
Sem olhos se quer, vejo
Vejo cintilantes criancinhas
Que dormem satisfeitas.

E dormem trapaceadas
pela próprio sono
que fraudou a fome.
Satisfeitas, porque dormem.

A verdade é justa:
Como a primavera que da rosas
Como magros riachos
Como sonhos inconcretos.

Tão justa quanto merecemos estar vivos.



10 de fevereiro de 2010

vão

No desfiar do texto
aponta a rara
poesia
de quimera.

Esmiuçando a poesia
em lascas
luminosas
de libélulas.

No decorrer
renascem
as nódoas do mistério
Em panteras.

Ah, os mistérios
Quantos deles
Quantas nódoas.
Deslumbro de arara

percorrendo o céu, azul.

8 de fevereiro de 2010

.

Urros as dúplices promessas.

prejuízo

Servia de espetáculo o balbuciar dos meus lábios.

A paisagem era um sofá e não muito mais que isso (exagerando, havia uma televisão a frente, uma mesa de jantar e suas respectivas cadeiras ). Foi isso o necessário. Um colo dos mais dóceis encoberto pelo jeans cheiroso que distanciava-nos a carne -a última lembrança- . O último toque.
Fui rei à penumbra do corredor que separava os cômodos e separava a noite ardilosa do restante do dia. Fui rei à regurgito.
Quantas horas mais podíamos ter vivido a Lua juntos?
Quantas lágrimas rolaram de goelas ou olhos numa só noite?

Sempre pensei que vê-la duplamente era de amor.
O sexto copo seria prejudicial.


3 de fevereiro de 2010

Chuva urbana

A fragrância molhada que rastreavam as minha narinas era sinal de uma densa chuva que estava por vir. As formigas estocavam-se e os pássaros sumiam aos montes no ermo do horizonte. Os cães sem dono esperavam com clareza o início da chuva e de seus entraves. Cada ser vivente via sobre si o céu fechado, como se fôssemos prisioneiros das nuvens e condenados a uma morte fria e úmida. Vê-se de tudo, pipoqueiros e mendigos em união.

Uma tarde escurecida corrompida pela falta de Sol ou pelo excesso de neblina. Por outro lado, via-me num cinema real, onde todos exercem o papel fixo de resmungar ou dialogar com estranhos, seja por bem ou por mal. Sem motivo algum, no anteceder da chuva, as expressões variam em todas as faces. Os lábios contraídos para alguma diagonal, significam, creio eu, que algo dói ou molha, algo propõe calafrios, entre inúmeros gestos que se repetem na chuva.

Frias gotas se espargem tímidas pela cidade, e a cidade busca refúgio depressa em bares, botecos, pequenas lojas de construção. Agora estava tudo horrivelmente dominado pelas águas. Um mendigo e um estagiário põe-se a dialogar pois ocupavam o mesmo espaço, a frente de um sacolão. Como já se esperava, a conversa tem seu fim à chegada do ônibus (de vidro embaçado, com cara de lotação, que até mereceu um parênteses) e o jovem bem vestido se vai para o conforto que o mendigo só terá após a morte. O jovem chegará com o paletó em sua casa, fremio, tomará um banho quente e repousará até que o chamem para o jantar. O mendigo aguardará nas forças da chuva algo para comer. Ainda assim não pára.

Algo me diz que por longos dias as praças serão inóspitas e no céu reinaram as gotas transparentes que caem sutis como pétalas. Os amantes amarão a chuva e a chuva pesará sobre a terra. O arco-íris não se exibirá, pois o Sol dorme como um bêbado. A aurora será poente e o poente castigará a cidade sem seu breu alaranjado. O subúrbio será triste em vão. Mulheres salvarão seus filhos.
Mendigos dormirão molhados.